sexta-feira, 7 de maio de 2010


"É claro que a vida é boa
E a alegira, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
E em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo pra ser feliz

Mas acontece que sou triste..."

Vinícius de Moraes

segunda-feira, 3 de maio de 2010

funeral de um lavrador


Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.

é de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe neste latifúndio.

Não é cova grande.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.

é uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.

é uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.

é uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.

Viverás, e para sempre
na terra que aqui aforas:
e terás enfim tua roça.

Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.

Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.

Trabalharás uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator.

Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
serás semente, adubo, colheita.

Trabalharás numa terra
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.

Será de terra
tua derradeira camisa:
te veste, como nunca em vida.

Será de terra
e tua melhor camisa:
te veste e ninguém cobiça.

Terás de terra
completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.

Como és homem,
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu.

Tua roupa melhor

será de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda.

Tua roupa melhor
e te ficará bem cingida:
como roupa feita à medida.

Esse chão te é bem conhecido
(bebeu teu suor vendido).

Esse chão te é bem conhecido
(bebeu o moço antigo)

Esse chão te é bem conhecido
(bebeu tua força de marido).

Desse chão és bem conhecido
(através de parentes e amigos).

Desse chão és bem conhecido
(vive com tua mulher, teus filhos)

Desse chão és bem conhecido
(te espera de recém-nascido).


Não tens mais força contigo:
deixa-te semear ao comprido.

Já não levas semente viva:
teu corpo é a própria maniva.

Não levas rebolo de cana:
és o rebolo, e não de caiana.

Não levas semente na mão:
és agora o próprio grão.

Já não tens força na perna:
deixa-te semear na coveta.

Já não tens força na mão:
deixa-te semear no leirão.

Dentro da rede não vinha nada,
só tua espiga debulhada.

Dentro da rede vinha tudo,
só tua espiga no sabugo.

Dentro da rede coisa vasqueira,
só a maçaroca banguela.

Dentro da rede coisa pouca,
tua vida que deu sem soca.

Na mão direita um rosário,
milho negro e ressecado.

Na mão direita somente
o rosário, seca semente.

Na mão direita, de cinza,
o rosário, semente maninha,

Na mão direita o rosário,
semente inerte e sem salto.


Despido vieste no caixão,
despido também se enterra o grão.

De tanto te despiu a privação
que escapou de teu peito à viração.

Tanta coisa despiste em vida
que fugiu de teu peito a brisa.

E agora, se abre o chão e te abriga,
lençol que não tiveste em vida.

Se abre o chão e te fecha,
dando-te agora cama e coberta.

Se abre o chão e te envolve, como mulher com que se dorme.

João Cabral de Melo Neto - Morte e Vida Severina



..."Assim, a preservação da normalidade, um estado de equilíbrio, não permite

alcançar a saúde enquanto tal, pois a normalidade é a admissão de uma norma, a

adaptação a um meio e às suas exigências, enquanto sentir-se com boa saúde ... é

sentir-se mais do que normal".


Canguilhem

quarta-feira, 28 de abril de 2010

O cheiro das coisas




"Este é o melhor cheiro do mundo, o da

palha remexida, dos corpos sob a manta,

dos bois que ruminam na manjedoura, o

cheiro do frio que entra pelas frinchas do

palheiro, talvez o cheiro da lua, toda a

gente sabe que a noite tem outro cheiro

quando faz luar, até um cego, incapaz de

distinguir a noite do dia, dirá, Este luar, pensa-se que foi Santa Luzia a fazer o

milagre e afinal é só uma questão de fungar, Sim senhores, que lindo luar o

desta noite."